Os indivíduos, governos e mercados estão cada vez mais perplexos com o desenvolvimento da inteligência artificial generativa, amplo conceito que é usado para se referir a qualquer tipo de inteligência artificial (IA) capaz de criar textos, imagens, vídeos, áudios, códigos ou dados sintéticos de forma autônoma e independente – o que inclui algoritmos capazes de fazer predições, escrever artigos, pintar quadros e (por que não?) subscrever, monitorar e precificar riscos seguráveis.
Estamos perplexos porque não conseguimos identificar, antever, mensurar ou lidar com externalidades positivas e negativas do uso da IA. A sociedade não possui uma superestrutura adaptada à escalada tecnológica que estamos vivendo em direção à singularidade. Nossas instituições políticas, religiosas, jurídicas e econômicas são calcadas em técnicas, valores e arquétipos lineares, binários e analógicos. Assentamos o nosso modo de vida na vã tentativa de tornar a natureza e as relações sociais previsíveis, mas o mundo VUCA é marcado pelo imponderável, ainda mais quando máquinas auto treinadas são capazes de moldar ou mesmo construir a realidade.
Embora o mundo caminhe cada vez mais para a ambiguidade, incerteza, complexidade e volatilidade, a indústria do seguro continua assentada na “mágica” retrospectiva da teoria dos grandes números, é dizer, continua coletando (ou tomando emprestado) dados históricos de eventos/acidentes e, ao normalizá-los, extraem a probabilidade de sua ocorrência, de maneira que possam calcular o prêmio a ser cobrado no âmbito do pool de apólices da mesma linha de negócios que dão cobertura para tais eventos.
A assimetria informacional de boa-fé (é dizer, avessa ao risco moral e à seleção adversa) e a teoria dos grandes números vêm, até hoje, permitindo uma atuação mais ou menos calibrada do mercado de seguros, que, com base em critérios já exaustivamente testados, consegue contemplar segurados expostos a graus variados de exposição a riscos, normalizados pela cobrança de um prêmio aceitável, cumprindo, assim, o objetivo principal da técnica de seguro: a socialização do risco.
Contudo, diante da evolução e aplicação cada vez mais disseminada da IA, a informação que fluía predominantemente do proponente/segurado em direção à seguradora tende a mudar de polaridade, de maneira que as seguradoras serão capazes de acessar e monitorar riscos de forma inédita, mais eficiente, customizada e granularizada, o que lhe permitirá oferecer garantias moldadas à exposição de risco, comportamentos e hábitos específicos de cada segurado.
Não se estaria exagerando ao se afirmar que o uso da IA vai mesmo quebrar o alicerce secular do seguro para fazer nascer a técnica prospectiva e individualizada de análise de risco. Robôs e algoritmos serão capazes de analisar, em fração de segundos, centenas, milhares de variáveis de um dado risco e de quem o suporta, comparar com histórico disponível no big data, precificar de forma individualizada e dispor da vigência, das coberturas e exclusões de maneira totalmente diferenciada e adaptável automaticamente no tempo.
Nesse cenário, não se pode descartar o risco das seguradoras realizarem “seleções oportunísticas” – ou seja, com base em métodos de análise de risco estritamente customizados para cada segurado, assim como no oferecimento de coberturas e fixação de prêmios milimetricamente individualizados –, as famílias e corporações que sustentam menos risco de ocorrência de eventos de sinistro serão disputadas pelo mercado, ao passo que os indivíduos que sustentam riscos elevados poderão não obter proteção securitária ou arcarão com custos elevados para transferência dos seus riscos.
Sem rédeas éticas, a IA, sem consciência e senso de pertencimento a um grupo social, com base no seu “pensamento” matemático, pode não ser capaz de utilizar critérios de equidade e justiça na celebração de contratos de seguro, potencializando, inclusive, discriminações por classe social, gênero, raça, origem, orientação política, região geográfica (redlining) etc.
Usando correlações matematicamente corretas, mas política e socialmente indevidas, uma subscrição com base em algoritmos inteligentes, criados apenas para minimizar perdas e incrementar lucros podem negligenciar, por exemplo, a aceitação de riscos suportados por raças que possam ter mais predisposição a certas doenças ou pessoas cujo perfil psicológico ou comportamento digital nas mídias sociais aponte para histórico de comportamentos mais arriscados ou mesmo crianças que, pelo perfil psicomotor, tenderão a praticar esportes radicais.
A IA, por outro lado, pode cumprir papel relevante na penetração e disseminação das coberturas securitárias, acessando e precificando riscos que não são atualmente seguráveis ou o são apenas parcialmente, a exemplo de cyber risks, bem como riscos derivados de pandemias, guerras e catástrofes. O uso da IA pode projetar com precisão a probabilidade de acontecimento de tais eventos ou antecipá-los em tempo suficiente para impedir ou mitigar perdas. Além disso, com a disseminação da IA, é esperada maior agilidade na prevenção, regulação e liquidação de sinistros, bem como o aumento do arsenal de técnicas e procedimentos de prevenção e combate ao uso fraudulento do seguro.
Nesse cenário de externalidades positivas e negativas, para manutenção da relevante atividade do seguro será importante que o mercado segurador e os reguladores incentivem a socialização do risco como instrumento de compensação da subscrição exacerbadamente granular, de maneira a frear ou mitigar os efeitos da seleção oportunística que pode ser levada a cabo pela IA. Para tanto, novas técnicas securitárias e regulatórias deverão ser implementadas, como a instituição de mais seguros obrigatórios, subsídios cruzados e obrigatoriedade de oferecimento de coberturas, entre outras.
Finalmente, com a inversão do fluxo informacional, é esperado que as seguradoras repensem a forma de executar a sua atividade, reduzindo o caráter eminentemente indenizatório e prestigiando uma atuação cada vez mais focada em serviços, com vistas à eliminação ou mitigação dos riscos incorridos não por um segurado padrão (mediano), mas por cada um dos segurados das suas carteiras, com características e comportamentos únicos e mutáveis.